Às vezes, uma visita inesperada traz mais aborrecimentos
do que momentos agradáveis porque somos pegos desprevenidos. Mesmo assim,
abrimos a porta de nossa casa, convidamos a se sentar e oferecemos o que temos
disponível: um cafezinho com bolachas.
Na mercearia perto de casa, enquanto eu comprava uns
recheios de sanduíche, uma senhorinha idosa e que mora sozinha, pediu dois
pacotinhos de patê e comentou:
—Uma velha amiga foi me visitar ontem. Eu
só tinha um saquinho deste patê. Fiz e servi. Ela comeu quase tudo.
—Bom... e agora a senhora está comprando
dois... ela vai visitá-la novamente? Emendei em tom amistoso.
Ela me respondeu, brava e severamente:
—Tomara
que não!
A gratificação em acolher um visitante na própria casa
estaria se extinguindo? Estará extinta a faculdade de compartilhar a companhia
de uma visita inesperada, em conversa despretensiosa, entremeada de bem-querer
indizível?
Fomos muito mal acostumados em oferecer, apenas, para
quem supomos obter algo em troca, enquanto negamos a oferta para quem tem dela precisão.
Construímos nossas personalidades através desta troca de moedas falsas.
Fomos mal habituados em tecer conjecturas sobre os
aspectos de caráter malicioso que podemos inferir de um gesto ao invés de
favorecermos a compreensão em considerações mais amorosas. Fica impossível
entremear com o mínimo de benquerença qualquer relação quando estamos tomados
por conjecturas sobre, tão somente, aspectos práticos e egóicos.
Enquanto prevalecer o pragmatismo em nós, ser-nos-á negada
a apreensão do significado inusitado da frase:
“Àquele que tem será acrescentado e terá em abundância,
mas àquele que não tem, mesmo o pouco que tem lhe será tomado”.
Pragmáticos, tenderemos a nos incapacitar a cada dia que
envelhecermos... tenderemos a envelhecer incapacitados... incapacitados em
comungar de uma conversa simplória, regada a cafezinho com bolachas.
"Ali onde estiver, será minha casa. Quem do me lado estiver, será minha família.”
Com estes simples dizeres, terminava o depoimento de um senhor, hoje com 67 anos de idade, que cresceu na orfandade e sem lar. E sobreviveu. Fato inacreditável se não fosse verídico.
O exercício dos princípios contidos nestas duas frases, aplicando-os durante uma semana em nossa vida, atribulada ou não, durante apenas sete dias seguidos de nossas vidas, aplicando-os com devoção silenciosa e profundamente sincera, como se fosse um pano de fundo branco sobre o qual as demais atividades corriqueiras transcorressem, já seria suficiente para proporcionar um estado diferenciado de ser e estar.
E se não fosse suficiente, pois então que se estendesse a aplicação destas frases para mais uma semana... e mais uma... para um mês... para a vida toda, por que não?
A calorosa verdade contida nestas duas frases está apta para abarcar toda uma existência... toda uma existência em humildade, em despojamento, em amor e em fé... na fé simples de uma criança sem teto e sem família!
E todos os tesouros colecionados, o conhecimento, a filosofia, a cultura, as tradições religiosas e místicas poderiam ser colocadas em seu lugar devido: o bolso de trás da calça.
Na praça onde se situa o prédio do Fórum João Mendes, em
São Paulo, homens – de terno e gravata – e mulheres – em elegantes tailleurs – buscam justiça esbarrando
com moradores de rua, há dias sem banho e com roupas puídas.
À vista de todos – à indignação de poucos – trajes formais
lado a lado aos ultrajes sociais.
Nos prédios bem próximos dali, mulheres em roupas sumárias oferecem-se por uns trocados.
Em quais dos prédios vocês acham que há mais garantias do
cidadão sair satisfeito?
Em quais prédios vocês acreditam que, em última
instância, a função social é exercida de forma mais rápida e eficiente?
O ditado popular “aqui se faz, aqui se paga” aplica-se ipsis litteris muito mais à entrada de
uma ‘casa de tolerância’ do que em outro lugar qualquer, pois o gênero humano,
em seus confraternos valores, encontra oportunidades mais convidativas para se
prostituir em gabinete requintado do que em prostíbulo propriamente dito.
Não por decreto extingue-se o decrépito do convívio
social.
Se tiver a alma assaltada pelo desespero, contemporize...
fique com o desespero, aceite-o, olhe para ele, permita a você senti-lo em toda
intensidade, como quando – à noite – prostramo-nos sentados defronte ao mar...
...a brisa resvalando por nossa fronte,
...o murmúrio das ondas incessantes penetrando nossos
ouvidos,
...a iridescência do luar cintilando no encrespado oceano,
Impossível discernir onde termina o horizonte, onde começa
o noturno céu!
Nesta atmosfera à beira-mar...
Enlevado pelas forças da beira-mar...
Acolhidos enternecedoramente pela beira-mar...
Deixe a sensibilidade vir à tona
E contemporize...
Contemporize as surras apanhadas
Através da cinta que assoviava cortando o ar,
Através da mão do semelhante estralando ao encontro de
nosso semblante,
Andando pelas ruas, fui impactado pela visão de um andarilho, um mendigo em andrajos, dormindo no meio do passeio, no meio da calçada. Cena comum em uma metrópole. Um velho cachorro, com feridas espalhadas pela cabeça e pelo corpo, dormia junto a ele. O mendigo – por temer que lhe roubassem o cachorro, creio – tinha uma das pernas sobre o animal. Só não fotografei aquela cena pelo celular porque considerei uma violação àquele momento de retiro, àquele instante de descanso. O mendigo, nem a esta simples privacidade, tinha direito.
Poderia se inferir desta cena, facilmente, a seguinte
conclusão: como um ser humano pode cair tanto?
Sem querer romancear a severa realidade dos fatos, fui
envolvido em uma consideração incomum: conclusões precipitadas, advindas de sugestões
condicionantes, tendem a nos manter na crosta, nos rudimentos de uma crosta
grosseira sem profundidade alguma.
Daquela deplorável cena de um corpo humano e de um animal
dormindo juntos no passeio público também se pode deduzir a Unidade e a queda
do conceito de queda da dignidade humana.
Quem consegue se apoderar do sentimento de ser um só,
mesmo com um animal feito o cachorro, mesmo maltrapilho, está apto a comungar
na Unicidade.
Tal aptidão, pelos indícios demonstrados no cotidiano
moderno, é algo em franca decadência. Quão mais digno e honrado é aquele ‘farrapo
humano’ em unidade com seu ‘cão perebento’ do que qualquer outro cidadão comum?
O abismo de quem é maior: do mendigo em andrajos ou do indivíduo que recebe boa
instrução, tem boa moradia, veste-se bem e tem boa alimentação, no entanto,
opta por praticar um individualismo doloso da mais rasa intimidade com seu
semelhante?
Eis uma habilidade (o contato com o íntimo) que, procurada, não pode ser
encontrada. É uma habilidade que vem ao nosso encontro... instala-se... e pronto!
Tão somente isto.
Uma vez instalada, tal aptidão nos apraz com um escudo
inviolável, um escudo dentro do qual matar ou morrer se igualam a comer ou
respirar; ou seja, são processos naturais.
(Ressalva: por favor, evitem inferências com toda e
qualquer doutrina fundamentalista, pelas quais nenhuma simpatia trago comigo).
Desde que o natural não seja violado, o provimento ao
natural é certo e infalível, assim como são certas e infalíveis as mudanças de estações
no planeta Terra devidas à sua trajetória orbital. Presto, aqui, uma homenagem
à honrada estirpe dos Samurais cujo ato de matar ou morrer, em obediência ao soberano,
continha a mesma suavidade do ato natural de respirar.
Porém, a coletividade convertida em manada – pois há os
que se recusam a seguirem a manada – tenta, com insistência espartana, violar a
natureza em suas mais belas manifestações. E, sendo assim, também, tenta violar
a natureza humana, o humano natural.
Violam ao reino mineral, ao reino vegetal, ao reino
animal e, inconsequentemente, ao reino hominal. Violam ao soberano de cada um
destes reinos violando, assim, ao Soberano dos soberanos.
Aos que tiveram a coragem de tirarem sua viola do saco,
fiéis à orquestração de uma sinfonia própria, hauriram o benefício de afinarem o
seu instrumento com notas musicais melodiosamente encantadoras, dentro do diapasão
inviolável daquele fiel escudeiro: a unicidade.
Em retribuição à magnânima honradez e respeito
demonstrados em relação a todos os reinos recebem, sobejamente, o direito ao
ingresso no Reino Virginal em virtude de conservarem a virgindade nos seus
ideais fraternos, apesar dos andrajos usados para cobrir o corpo, apesar das
supostas violações contra a virgindade do próprio corpo.
Mãe, minha Mãe Soberana, Mãe de todos nós, nossa Mãe
Natureza, ouso erguer a Vós o meu clamor profano, pois pressinto próximo o dia
em que os edifícios construídos pelo homem abissal ruirão em decorrência exclusiva
do extremado cultivo deste abismo, desta diáspora a que muitos se deixaram
enredar pelo descrédito consciente em relação ao poder da natureza, em relação ao
Vosso Poder; por – deliberadamente – desacreditarem no poder de suas próprias naturezas
irmãs!